Apresentamos a seguir a iniciativa Tanto Mar, um espaço de registro de trabalhos de arquitetos portugueses fora de Portugal que, com intervenções no ambiente construído, procuram ter uma atitude transformadora a partir das questões sociais que se colocam no momento e espaço em que são construídas. Praticamente desconhecidos em Portugal e dispersos por todo o mundo, estes criadores portugueses, que operam no centro das grandes questões que o presente nos coloca, só constituirão uma massa crítica útil ao país se o seu trabalho for registado, reconhecido e discutido também em Portugal.
O texto abaixo, escrito coletivamente pelo Ateliermob, fez parte da exposição de projetos organizada pelo Tanto Mar. Após o encerramento da exposição, no dia 20 de julho deste ano, o conteúdo exposto foi transferido para a plataforma online do Tanto Mar.
Leia a seguir o relato de todo esse processo ilustrado pelas fotografias de Fernando Guerra.
A CONSTRUÇÃO DA EXPOSIÇÃO
A ideia de uma exposição que registasse o trabalho de portugueses fora de Portugal, em áreas relacionadas com a arquitetura, começou a ser pensada há três anos. Sucediam-se notícias de arquitetos que se viam forçados a emigrar, e o acompanhamento desses processos era tema de conversa recorrente no ateliermob. Entre o desgosto de uma emigração forçada e as notícias de quem já só trabalhava para o estrangeiro, foi-se constituindo, informalmente, um conjunto de contatos de apoio e partilha de informação sobre experiências de emigração que rapidamente se transformou numa rede, com interesse disciplinar, de partilha de conhecimento, metodologias e processos de trabalho.
Ao sistematizar a informação, encontrou-se um ramo em comum de particular relevância sobre o que se entende denominar como arquitetura social. O interesse por registar e acompanhar estas práticas e realidades não resulta apenas do facto de, nos últimos anos, terem passado a estar no centro das mais cautelosas discussões disciplinares sobre o papel da arquitetura no mundo, mas também por se crer que a exposição destas práticas e o cruzamento de diferentes processos e abordagens poderá recolocar a arquitetura, em Portugal, como uma atividade estruturante na transformação e melhoria das condições de vida de grande parte da população.
Em Março de 2012, quando o Centro Cultural de Belém abriu publicamente um período de candidaturas para novos projetos, procurou-se, pela primeira vez, estruturar uma ideia de exposição que pudesse não apenas tornar público e acessível o conhecimento e a rede existentes, mas também alargá-los a todos os que nela quisessem participar. Este trabalho encontra viabilidade, em 2013, ao obter financiamento da Direção-Geral das Artes, através do concurso de apoios pontuais às artes.
Identificado o interesse pelo contexto e angariados os meios para o trabalhar, importava perceber o objeto.
Mais do que uma investigação sobre a dimensão e as consequências da emigração que, necessariamente, conduziria a uma exposição monográfica de percursos pessoais, interessava produzir conhecimento em métodos, processos e práticas espaciais transformadoras da vida das pessoas e da realidade construída, no presente.
Tendo a primeira fase sido suportada pela rede de contatos pessoais inicialmente descrita, importava torná-la acessível a todos. Em Maio de 2013, foi aberto um período de candidaturas que contou com a inscrição de setenta e seis projetos. Não era relevante a idade dos candidatos ou se detinham formação específica, mas que os projetos tivessem sido realizados no século XXI ou que estivessem sendo realizados atualmente. Das candidaturas recebidas, resultou uma visão abrangente, intergeracional e multidisciplinar, a partir de diferentes realidades e geografias.
Para dicutir as temáticas em cima da mesa, entendeu-se convocar um momento público, a 12 e 13 de Dezembro de 2013, em que vários pensadores portugueses e estrangeiros - Anna Buono, Cesar Reyes Nájera, Ethel Baraona, Fredy Massad, Inês Moreira, Joaquim Moreno, José Mateus, Luís Santiago Baptista, Marta Silva, Pedro Campos Costa, Shumi Bose e Vera Sacchetti - foram desafiados a debater conceitos e curadorias, cujo registo em vídeo também fez parte desta exposição.
A página online do Tanto Mar mostra a síntese desse processo até o momento, expondo alguns dos projetos inscritos nas candidaturas.
A ORGANIZAÇÃO DA EXPOSIÇÃO
A partir de um dispositivo expositivo modular, foram apresentados trinta e três projetos agrupados em cinco temas que caracterizam o contexto da intervenção: Emergência, Escassez, Urbano, Informal e Formal.
Nos três trabalhos enquadrados no tema Emergência, registam-se práticas de intervenção rápida e de formação para situações de conflito ou desastre natural. No grupo de projetos associados a contextos de Escassez, são apresentados dez trabalhos nos quais se desenvolvem práticas majoritariamente apoiadas em métodos construtivos, mão-de-obra e materiais locais com custos de obra reduzidos. No caso dos seis trabalhos agrupados no tema Urbano, alarga-se a abrangência geográfica dos projetos participantes, registando-se ações temporárias em espaços específicos ou intervenções junto de comunidades marginalizadas em países industrializados. Por fim, agrupam-se sete projetos desenvolvidos em contextos não planeados ou de geração espontânea no tema Informal e os outros sete projetos de equipamentos públicos, que procuram uma ação transformadora junto a comunidades no tema Formal.
Na área oposta à entrada da exposição, após a parede que encerra o espaço dos projetos, expunha-se um pouco do que foi o processo de criação da exposição. Nas mesas eram exibidas algumas das centenas de e-mails e conversas trocadas; uma imagem mais próxima dos que contribuíram, ao longo dos meses, para a concretização desta exposição; revelavam-se as referências e ferramentas mais úteis para o seu resultado; e foram feitas algumas sínteses do processo e das reflexões em torno da sua criação. Por fim, expôs-se o vídeo com as horas de debate intenso nas mesas redondas que antecederam esta exposição.
A EMIGRAÇÃO RECENTE
Conforme explicado anteriormente, esta não era uma exposição sobre a onde de emigração de técnicos qualificados que o país atravessa, contudo, numa exposição sobre portugueses fora de Portugal não se poderá ignorar a dimensão que esta questão atingiu nos últimos anos.
Segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicados em 31 de Dezembro de 2013, estima-se que quase um milhão e meio de portugueses estejam emigrados e que cerca de 10% destes tenham formação superior. O mesmo estudo revela que Portugal é o segundo Estado-membro com maior taxa de emigração (14,2%) no espaço da OCDE, estando atrás apenas da Irlanda (16,1%). De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), entre emigrantes temporários (que partem com a intenção de permanecer menos de um ano noutro país) e permanentes, em 2012, emigraram oficialmente 121.418 portugueses e, no ano anterior, 100.978. Estes números de emigração são apenas equiparáveis aos dos anos 60 (em 1966, emigraram 120.239 portugueses), quando Portugal vivia sob uma ditadura e com a Guerra Colonial em curso. No atual fluxo, quase metade dos emigrantes permanentes de 2012 – 41,5% – tem entre 20 e 29 anos, sendo que dois terços tem menos de 39 anos.
A ARQUITETURA SOCIAL
Deve-se rejeitar a ideia da novidade com que tantas vezes se apresenta. Se parece ser inquestionável que os temas sociais estão no centro das mais atuais discussões disciplinares em torno da arquitetura – naquilo que é comummente sintetizado na expressão “social is the new green” –, não parece nem justa nem rigorosa a tentativa de o identificar como algo de novo. Com esta recusa não se pretende, de forma nenhuma, desqualificar o tema mas, numa primeira análise, retirá-lo do espectro do imediatismo para que ganhe peso e maturidade.
O debate sobre o papel da arquitetura no mundo é um tema recorrente nas discussões disciplinares. No essencial, as diferentes opiniões dividem-se em três grandes grupos: os que entendem que o papel social do arquiteto é inerente à profissão – para quem a ideia de arquitetura social é uma redundância –, os que entendem que deverá ser visto como uma especialização e os que identificam no carácter social da intervenção uma dinâmica exterior ao campo disciplinar da simples criação do espaço ou restritiva da liberdade artística, colocando muitas destas intervenções fora do espectro da arquitetura.
Esta exposição não pretendia encerrar este debate, mas estimulá-lo.
A seleção de projetos apresentada estruturou-se a partir de práticas profissionais de arquitetura e planeamento que assentam em processos participativos ou de autoconstrução, intervenções em contextos de desastre ou a partir de projetos e programas que provocam um forte impacto social na melhoria dos contextos locais.
O QUE FICA POR FAZER
Esta exposição foi o produto de escolhas. Na síntese que se apresenta, fica sempre muito por contar.
Se, em primeiro lugar, fica por mostrar o trabalho de muitos que não conhecemos, que não terão sabido da exposição por não estarem na rede de contatos e parceiros que, há cerca de um ano, ajudou a divulgar o open call de projetos, em segundo lugar, fica por mostrar o trabalho dos que, mesmo sabendo do open call, não tiveram condições de submeter o trabalho (por questões de direito de autor, por estarem empenhados em tarefas humanitárias, por não terem registos) ou por que querem assumir uma ruptura com o país ao qual não querem ser associados. Para todos, ficará aberta a possibilidade de integrarem a plataforma online apresentada aqui.
Por decisão curatorial, optou-se por retirar desta mostra estratégias de intervenção do Estado português que se podiam inserir no âmbito e no tempo dos projetos apresentados. Processos como os desenvolvidos pelo Gabinete de Estudos de Reconstrução de Timor-Leste (GERTiL), levados a cabo a partir da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, ou como o da participação portuguesa na Bienal de Arquitetura de São Paulo, comissariada por Manuel Graça Dias e sob o mote “Cinco Áfricas/Cinco Escolas”, mereceriam um estudo conjunto por forma a identificar potencialidades, qualidades, erros e riscos.
Por outro lado, muitas foram as questões que foram surgindo ao longo destes anos e às quais ainda não se consegue responder com rigor. Será que existe uma identidade comum? Se sim, como se caracteriza em condições tão díspares? Que impacto tiveram a integração europeia ou os programas de intercâmbio cultural na definição ou na propensão para este tipo de realidades? Qual a relevância do período de formação acadêmica, o contexto social de proveniência, a língua portuguesa ou as condições atuais do país, na escolha por este tipo de práticas espaciais?
Como se percebe, projeta-se esta exposição como uma porta que se abre, não apenas para que outros possam encontrar caminhos de investigação, mas também para que se possa partilhar informação e práticas espaciais úteis para o presente, que encontrarão, certamente, terreno fértil na realidade portuguesa.
Fica por fazer o registo destas práticas em Portugal.